Escritório Frei Tito de Alencar como espaço formativo para as futuras gerações
Por Ana Vitória Marques11/06/2025 10:42 | Atualizado há 1 dia
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“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
- Paulo Freire
Além das ações diretas em demandas de violação dos direitos humanos, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA) exerce um papel formativo para as próximas gerações, atuando como uma espécie de escola na temática.
Mais do que experiência de escritório de advocacia, o EFTA oferece aos estudantes que atuam como estagiários a possibilidade de transpor os muros das universidades e pisar no chão das lutas populares, tendo o Direito como instrumento de transformação da realidade.
Hoje, o EFTA conta com nove estagiários do curso de Direito de diversas instituições do Ceará: Amanda Azevedo Barreto, Felipe Gomes Rodrigues, Jackson Pereira Barbosa, Leonardo Pacheco de Lacerda, Lirielly Gurgel Costa, Maria Eduarda Matos, Mariana Loiola, Ormisa Gurgel Sales de Freitas
e Thaís Martins da Silva.
Nesta matéria que compõe o especial em celebração aos 25 anos desse órgão, vamos conhecer mais esse lado do escritório.
Seleção específica para os direitos humanos
Em 2021, foi realizada a primeira seleção para estagiários da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece) com foco exclusivo na atuação em direitos humanos. O presidente do órgão, deputado Renato Roseno (Psol), comenta que essa foi uma conquista para o EFTA.
“Quando eu cheguei, o estagiário não era um estagiário de direitos humanos, era um estagiário de Direito que era lotado no escritório. Isso criava conflito. Por quê? Ele não necessariamente queria estar ali. Porque, veja, ir ao encontro de uma comunidade que está ameaçada de despejo, atender uma vítima de violência racial, por exemplo, não é todo mundo que quer fazer isso, não é todo mundo que tem as habilidades para fazer isso. Então, a gente foi também aprendendo que o melhor estágio vai ser o dedicado para direitos humanos”.
Reunião da equipe do EFTA com deputado Renato Roseno, presidente do órgão - Foto: Érika Fonseca
O parlamentar destaca a importância de ações como essas para a atuação na justiça em geral, transcendendo os espaços de trabalho do Escritório Frei Tito de Alencar.
“Esse estudante já vai aderir a uma perspectiva que ele sabe que vai ser de direitos humanos. Isso é bom para o escritório, mas é bom para ele também. Hoje nós temos ex-estagiários em várias funções. Tem ex-estagiário nosso na Defensoria, na Polícia Civil, na Advocacia-Geral da União, no Judiciário. Vai ser muito interessante você permitir a esse futuro profissional do Direito uma formação específica em direitos humanos”.
A vivência in loco da defesa dos direitos humanos e da dignidade de pessoas vulneráveis
Higor Rodrigues, coordenador do Escritório Frei Tito de Alencar, ressalta o viés formativo e de atuação do órgão, que trabalha a perspectiva da assessoria jurídica popular e da atuação em direitos humanos.
Segundo ele, o trabalho busca "construir juntos na formação desses estudantes esse viés de atuação que é pautado por uma perspectiva ético-política de defesa dos direitos humanos".
Foto: Máximo Moura
"É um tipo de atuação que não é muito comum e é uma experiência muito pioneira. Então, não é todo estudante de Direito que vai ter a oportunidade de ter contato com essas temáticas”.
Para esta matéria especial, conversamos com alguns estagiários e uma ex-estagiária do Escritório Frei Tito sobre as experiências e o impacto da atividade no órgão na formação profissional e pessoal deles. Com unanimidade, os três falaram sobre a possibilidade de vivências práticas daquilo em que só se vê na teoria na faculdade.
Mariana Loiola: EFTA como divisor de águas
No 8º semestre de Direito, Mariana Loiola conheceu o Escritório Frei Tito de Alencar pelas atividades com as quais era envolvida na faculdade. Quando soube da seleção, não pensou duas vezes antes de se inscrever e tentar uma vaga.
Foto: Bia Medeiros
“Quando eu trabalhei e estudei sobre esse tema de direitos humanos na faculdade, em um intercâmbio intercultural, eu não entendi muito bem como isso se aplicava na prática. Eu achei muito interessante tudo o que era trazido e eu gostei muito de ver diversas perspectivas além da minha realidade”.
Já passados dez meses desde que começou a estagiar no órgão, Mariana é enfática ao dizer que o EFTA foi um divisor de águas em sua compreensão não só do direito, mas da vida.
“Quando eu vim para o Frei Tito, tudo aquilo que era uma teoria veio para uma perspectiva prática. E é um choque muito grande você trabalhar com os direitos humanos, porque a legislação diz que trata como uma prioridade. E a gente vê que, na verdade, as pessoas constantemente têm os seus direitos violados. Então, eu digo que houve essa transição dessa Mariana antes e pós [Frei Tito], não só na perspectiva profissional, mas na perspectiva como ser humano mesmo”.
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Mariana durante visita técnica à retomada indígena anacé da Baixa Grande, em Caucaia, com o advogado Péricles Moreira.
Para Mariana, a formação que está tendo no EFTA é enriquecedora. “É um constante aprendizado. O nosso advogado responsável [Péricles Moreira] também ensina muito a gente sobre muitas coisas que, como eu disse, às vezes, até estudando na teoria, você não aprende, você não vê", avalia.
"Então, eu acho que o mais enriquecedor dessa experiência é isso, você sair de uma bolha teórica, onde tudo são flores e cores, e você ver uma realidade em que você precisa, de fato, lutar por aquelas pessoas. Porque, de fato, a advocacia jurídica popular vai muito além do termo advocacia, é uma luta diária”.
Jackson Pereira: pertencimento e proximidade
Jackson Pereira fez um caminho diferente dos demais integrantes do Escritório Frei Tito: em vez de a aproximação com os direitos humanos acontecer pela graduação em Direito, ele foi fazer o curso justamente por ter se envolvido e gostar de trabalhar com essa temática.
Foto: Bia Medeiros
Atualmente, ele está no 6º semestre do curso de Direito, sua segunda graduação. Antes, cursou Psicologia, quando se aproximou de projetos sociais no período da pandemia, começou a visitar instituições e prestar apoio na questão do adoecimento psicológico. Uma das comunidades que ele atendia era assessorada pelo EFTA.
“Eu conheci o Frei Tito e vi o ótimo trabalho que eles estavam fazendo e já brilhou meus olhinhos ali naquele momento. E, quando eu entrei no Direito, eu pensei: ‘Poxa, eu vou tentar o que eu gosto e acho que vai ser o único estágio que eu vou realmente fazer, que eu vou me sentir pertencente naquele local’". Jackson atua principalmente no eixo Povos e Comunidades Tradicionais.
De acordo com ele, um dos pontos que mais se destacaram ao chegar ao escritório foi a horizontalidade no relacionamento da equipe, o que facilita o aprendizado e traz oportunidades de experiência que vão além do aspecto teórico da formação.
"Temos esse espaço de aprendizado, a gente tem as reuniões constantes, em que podemos trazer dúvidas e ideias e todas são muito bem acolhidas. Então, a horizontalidade é uma coisa que me surpreendeu muito, por não existir uma relação de superior e inferior, quem sabe mais e quem sabe menos. Acho que é um momento que todo mundo aprende, e não só com os advogados, mas também com a comunidade”.
E aquilo que foi aprendido no EFTA não deve permanecer lá, mas deve seguir onde quer que ele vá atuar, é o que afirma Jackson.
Jackson durante atividade com o advogado Adilson Barbosa e moradores da comunidade Riviera - Foto: Bia Medeiros
“Essa proximidade com a comunidade, de ir a campo e de fato ver a luta é algo que eu gosto muito e eu nunca quero deixar de sentir isso na pele. Lutar pelos direitos humanos é uma batalha contínua que todo dia a gente tem que fazer. Nós temos tido há muito tempo um crescimento do conservadorismo, e eu acho que é importante formar profissionais que estão dispostos a lutar por causas progressistas, pelo avanço dos direitos humanos. Então, pretendo me juntar nessa força”.
Beatriz: o direito possível e a atuação mais humana
As experiências construídas no EFTA não acabam quando o período de estágio se encerra, pelo contrário, elas ajudam a moldar o futuro de cada um e passam a fazer parte dos passos seguintes, afinal, a luta é constante e diária. Esse é o caso de Beatriz Vidal, ex-estagiária do escritório.
Beatriz esteve no EFTA entre 2022 e 2024 e atuou com maior foco no eixo Terra, Território e Justiça Ambiental. Essa trajetória impactou diretamente no percurso acadêmico que fez, o que foi representado pelo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dela, em que estudou os possíveis impactos socioambientais e do direito ao território da implantação de eólicas offshore em comunidades tradicionais da zona costeira cearense.

Foto: Acervo pessoal
Atualmente, ela trabalha como assessora jurídica no Instituto Terramar, uma organização da sociedade civil que trabalha com comunidades tradicionais da zona costeira do Ceará, tratando sobre justiça socioambiental.
“Continuo atuando na área, mas, mesmo que não estivesse, posso afirmar que essa passagem pelo Frei Tito me ensinou bastante. Se por vezes temos a visão de um direito burocrático, elitista, inacessível e distante da realidade de boa parte da população que sofre com a desigualdade socioeconômica e injustiças, com a experiência no EFTA pude ter um olhar diferente, de que tem como haver uma atuação mais humana e acessível a todos”.
Para Beatriz, o EFTA reforçou aquilo que já deveria ser regra, mas que é negligenciado muitas vezes: o papel de todos em garantir os direitos fundamentais de cada pessoa ou comunidade, “não por bondade ou caridade, mas por obrigação e garantia constitucional”.
“Um dos ensinamentos que sempre levarei comigo é que cada caso que chega é único e que as pessoas atendidas não são apenas números, mas vidas diretamente impactadas por injustiças e violações de direitos. Mais do que apenas dar uma solução ou cumprir obrigações do seu trabalho, é necessário ter o comprometimento com aquelas pessoas de tratá-las com respeito e escutá-las, garantindo um espaço acolhedor e humano diante de todas as dificuldades e desafios que fizeram ela chegar ali”.
Assim como Jackson, ela também destaca o impacto do aprendizado a partir da horizontalidade do escritório nos atendimentos.
“Mesmo eu sendo uma profissional, tenho muito o que aprender com aquele atendido e tudo o que ele passou, podendo construir estratégias conjuntas de atuação. Não se trata simplesmente de “ser a voz” do outro, mas, através do meu conhecimento e da perspectiva daquela pessoa/comunidade, construir estratégias que façam com que a voz daqueles que sempre foram silenciados, invisibilizados e excluídos seja amplificada e ouvida”.
Um propósito e o trabalho de muitas mãos
Cada vitória obtida pelo EFTA é resultado do empenho e do compromisso de cada integrante da equipe de advogados, estagiários, apoio administrativo e coordenação. O propósito é a defesa dos direitos humanos e a busca pelo acesso à justiça para os mais vulneráveis, e o trabalho é sempre coletivo e de muitas mãos.
Mais do que só o alcance de um objetivo final, no Escritório Frei Tito de Alencar é o caminho que vale a pena: no compartilhamento de saberes, no empoderamento de comunidades, na esperança no olhar de quem tem seus direitos violados e, claro, em cada conquista, por menor que seja.
Para que isso aconteça, além da atividade-fim do órgão, o EFTA conta com o apoio de três servidoras da área administrativa: Ana Paula Isidório, que atua na sede do Crato; Adriana Soares e Daniele Freitas, que está há 10 anos no escritório.
Foto: Máximo Moura
"Eu sou muito grata em fazer parte da equipe do Escritório Frei Tito. Quando eu cheguei aqui, o escritório era pequenininho, mas, de lá para cá, a gente foi aumentando a equipe de advogados e de estagiários. Eu gosto muito de atender ao público que chega aqui. Muitas vezes, são pessoas fragilizadas que vêm em busca de orientação jurídica ou de algum apoio administrativo, então eu me sinto privilegiada por ser a responsável por fazer o acolhimento inicial dessas pessoas”, declara Daniele.
Quem foi Frei Tito de Alencar?
Frei Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza, no dia 14 de setembro de 1945, o caçula de 11 filhos de Ildefonso Rodrigues Lima e Laura Alencar Lima. Educado desde criança nos ensinamentos cristãos, Tito de Alencar militou desde cedo na causa do Evangelho e contra as injustiças sociais.
Fez parte da Juventude Estudantil Católica (JEC) e foi vice-presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Em 1966, ingressou na Ordem dos Frades Dominicanos, sendo ordenado no ano seguinte. Cursou também Filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Durante a ditadura civil-militar do Brasil (1964-1985), foi preso pela primeira vez em 1968, por causa do envolvimento com o movimento estudantil. Depois de solto, voltou a ser preso em 1969, juntos aos jovens dominicanos Frei Betto, Frei Fernando, Frei Giorgio e Frei Ivo, todos acusados de colaboração com a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Frei Tito foi torturado pelo delegado Fleury, nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), com choques elétricos, palmatórias e pancadas na cabeça. Na prisão, escreveu sobre a sua tortura e o documento correu pelo mundo e se transformou em símbolo da luta pelos direitos humanos.
Banido do Brasil em 1971, pelo Governo Médici, passou pelo Chile, Itália e França, onde viveu no Convento Sainte-Marie de La Tourette, em Éveux. Traumatizado pela tortura, Frei Tito passou por tratamentos psiquiátricos, mas não resistiu aos horrores vividos e, em agosto de 1974, morreu por suicídio. Em 1983, o corpo de Frei Tito chegou ao Brasil e foi velado como mártir, com a presença de mais de quatro mil pessoas.
Confira aqui cobertura da comunicação da Alece sobre os 25 anos do EFTA:
- Agência de Notícias: Escritório Frei Tito de Alencar: 25 anos em defesa da dignidade humana e justiça social e EFTA 25 anos: legado e conquistas do escritório de direitos humanos e assessoria jurídica popular
- Alece Mídias: https://www.instagram.com/reel/DKt8KiPgnSq/
- Alece FM: Escritório Frei Tito completa 25 anos nesta terça-feira (10)
- Alece TV: Matéria Jornal Alece no dia 10 de junho ;
Edição: Samaisa dos Anjos
Núcleo de Comunicação Interna da Alece
E-mail: comunicacaointerna@al.ce.gov.br
Página: https://portaldoservidor.al.ce.gov.br/
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